Crítica: Aquarius

Créditos: Vitrine Filmes        
Alô gente, eu estou viva e sobrevivendo ao fim do semestre universitário! 
Como trabalho para a matéria de jornalismo cultural, fiz uma crítica sobre o filme Aquarius, do diretor Kléber Mendonça Filho e achei válido compartilhar aqui. Espero que vocês gostem!

Pelo direito de dizer não
“Você sabe o que é saber que você não está louca quando todo mundo diz que você enlouqueceu? É isso o que enlouquece”.

A frase é de Clara, uma jornalista e crítica de música aposentada, que aos 65 anos é a última moradora do Edifício Aquarius. Interpretada por Sônia Braga, Clara é a protagonista de Aquarius, o mais recente filme do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho.

O diretor faz parte do chamado “novo cinema pernambucano”, que há dez anos ganha cada vez mais espaço no cinema brasileiro, que tem seu eixo principal como Rio-São Paulo. Seu primeiro trabalho foi Enjaulado, em 1997, e entre curtas e longa-metragens, alcançou grande “louvor” da crítica especializada com o filme O Som Ao Redor - que em 2013, acabaria sendo a indicação do Brasil para concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

Aos 49 anos, coleciona prêmios ao redor do mundo como Sydney Film Festival, Lima Latin American Film Festival, ABC Cinematography Award, Dublin Film Critics Awards, além de ter ganho com Aquarius e o Som Ao Redor, todos os prêmios em que concorreu com no SESC Film Festival e Gramado Film Festival.

Foi indicado ao César e duas categorias em Cannes, onde apresentou Aquarius e causou polêmica ao realizar um ato ao lado do elenco do filme, em apoio a ex-presidente Dilma Rousseff. Durante o evento, a equipe do filme segurou folhas com dizeres em inglês e francês, como “Um golpe tomou lugar no Brasil” e “O mundo não pode aceitar este governo ilegítimo”.

Quando Aquarius começa, conhecemos Clara nos anos 80, com o cabelo no estilo Elis Regina e um sorriso fácil no rosto. Sua paixão por música fica evidente quando, em um breve passeio a praia, se empolga em mostrar ao irmão e duas amigas, uma fita com a música “Another One Bites The Dust”, do Queen.

Tempo depois voltam para a casa de Clara, onde está acontecendo uma festa de aniversário para a tia Lúcia. Ela recebe homenagem dos filhos de Clara, que contam os feitos da tia, como se formar em uma época em que mulheres não tinham grande presença nas universidades, e lutar pela democracia durante a ditadura. Entretanto, a mesma parece não ligar para os discursos, enquanto se distrai com um móvel da sala, lembrando de seu antigo parceiro. Após a homenagem, o marido de Clara pede a palavra.

“Todo mundo sabe que 79 não foi um ano fácil”, diz.


Para o Brasil e para Clara. O país, que passava por uma ditadura militar, teve promulgada em 1979, a Lei da Anistia, beneficiando torturadores do regime - alguns foram até premiados. Já Clara, passou aquele ano de hospital em hospital, para curar um câncer de mama. Porém, o marido agora celebra a cura da doença e todos brindam a vitória de Clara, enquanto começam a dançar ao som de “Toda menina baiana”, de Gilberto Gil. 

 
A sala antes cheia agora torna-se vazia, embora a música seja a mesma. Estamos em 2016, e a Clara do presente solta seus cabelos no meio da sala, enquanto se alonga. Seus longos cabelos negros tornaram-se também símbolo de sua força, como na história de Sansão.

A porta toca e Clara recebe a visita de dois representantes da construtora Bonfim - um nome um tanto irônico para a empresa-, “Seu Geraldo” e Diego, e percebemos que não é a primeira visita da construtora. Descobrimos pela conversa que todos os outros apartamentos do edifício foram comprados pela Bonfim, que pretende demolir o prédio. No lugar do antigo, pretendem construir “o novo Aquarius”, antes nomeado como “Atlantics Plaza Residence”. O projeto é o primeiro de Diego, neto de seu Geraldo.

Rapidamente percebemos que Clara não tem o mínimo desejo de vender seu apartamento, de frente pra praia de boa viagem. Educadamente fecha a porta, troca olhares com a empregada e volta para a sua rotina.

Mas não é só a construtora que quer a personagem fora do apartamento. Seus filhos acham que a mãe não deveria ficar sozinha no Aquarius, e a filha mais velha constantemente tenta convencê-la de que deveria vender o apartamento pelo dinheiro - uma vez que está com dificuldades financeiras e também se beneficiaria da venda.

Enquanto a trama se desenrola, cada vez mais é procurada pela construtora, que diz estar “aberta ao diálogo”. Embora, ao longo das mais de duas horas de filme, o espectador possa cansar-se da teimosia da mulher, trata-se de um filme de resistência, feito para incomodar. Há certo viés feminista, ao retratar uma mulher que recebe tantos “ataques” por dizer não. Quantas vezes ao dizer não, as mulheres foram atacadas, excluídas ou ganharam fama de loucas e exageradas? Quantas mulheres são frequentemente interrompidas durante seus discursos? A resistência muitas vezes é um lugar solitário. 

Durante o filme percebemos que Clara está longe de ser a figura caricata que geralmente são representadas as mulheres da terceira idade. Não reclama de dores nas costas, usa vestido com tênis e conversa com os filhos por Whatsapp. É a “vó legal” que tem iphone e acoberta o neto que está no quarto com a namorada.

A personagem quebra o paradigma que a mulher na terceira idade é aquela figura da mulher de cabelos brancos, tricotando na sala com um chale em seu pescoço. Clara sai com as amigas para dançar, bebe cerveja e tem vida sexual ativa, mesmo depois da morte de seu marido.

Mendonça Filho usa Sônia Braga como sua musa, como Godard usa Anna Karina, e tantos diretores usaram a própria nos anos 80. A atriz faz uma volta triunfal em Aquarius, após permanecer mais de dez anos longe do cinema brasileiro. O diretor também volta  a trabalhar com Irandhir Santos e Maeve Jinkings.

Mas a real musa do diretor é a cidade de Recife, cenário de praticamente todos os seus filmes e curta-metragens, como Vinil Verde (2004), Recife Frio (2009) e O Som Ao Redor (2012).

Aquarius bebe muito da fonte de “O Som Ao Redor”, embora sua estrutura seja menos complexa. Os dois filmes são divididos por capítulos, retratam a vida da classe média e a especulação imobiliária em Recife.  

 
A câmera de Mendonça Filho cria tensão e engana o espectador continuamente, como na cena em que jovens negros observam um grupo se exercitando, e quando dois homens seguem Clara até sua casa. O slowburning deixa o espectador ansioso por uma embate que nunca acontece. Outra marca registrada do diretor que também aparece no filme são as compridas cenas de zoom, para dar atenção a detalhes que poderiam passar despercebido pelo espectador.

Sua trilha sonora diz muito sobre a sua personagem principal. Com músicas predominantemente dos anos 70, as canções tornam-se uma ponte entre Clara e sua década favorita, quando era crítica musical. Tem Gilberto Gil, Reginaldo Rossi e Villa Lobos - a única participação internacional na lista é da banda Queen. A música não serve apenas como elemento de fundo no filme. Clara tem prazer de colocar seus muitos discos de vinil para tocar, e cantar junto, dançando no meio da sala. Trata-se do prazer do físico e dos velhos tempos em contraposição do nosso imaterial e jovem.

Embora a playlist do filme tenha sido disponibilizada na plataforma de streaming Spotify, para reforçar a mensagem do longa, a distribuidora Vitrine Filmes produziu 100 fitas cassetes com as canções. As fitas foram enviadas para um público selecionado junto com uma carta da personagem Clara, escrita em uma máquina de escrever. 

Entre todos os assuntos abordados no filme, trata-se também sobre vínculos. Questiona-se que tipo de vínculo estamos criando na nossa sociedade do imaterial. Não compramos mais CDs, nossos DVDs estão no Netflix e nossas músicas estão nos Spotfy e Youtube. Podemos ter todas as músicas do mundo em nosso bolso, mas não podemos tocar. O físico também existe, e resiste - e busca existir do lado do digital sem que nenhum seja descartado.

Um dos pontos explorados no longa é a relação de patroa e empregada, que embora as personagens sejam mais próximas do que no ótimo “Que Horas Ela Volta” (2014), da diretora Anna Muylaert, não é tão prazeroso de assistir. O longa de Muylaert trata das classes sociais melhor que Aquarius, e com menos tempo. Assim, consegue escapar do perigo de tornar um filme cansativo, como acaba acontecendo com Aquarius.

Entre as inspirações do diretor, o mesmo disse que vê Clara como uma projeção de sua mãe. Caracteriza a personagem como uma “heroína clássica” do cinema, como as personagens interpretadas pela atriz italiana Anna Magnani na década de 60. Há também grande influência de produções audiovisuais da Itália durante 1950 e 1960, onde há mulheres fortes e com grande presença, que enfrentam série de desafios.

Embora nunca tenha sido confirmado pelo diretor, também pode-se interpretar nas entrelinhas, influência do Ocupe Estelita, movimento que luta contra a venda ilegal de áreas de porto no Recife para imobiliárias. Há uma severa crítica ao crescimento desordenado das grandes cidades brasileiras.

Aquarius é o auge da carreira de Kléber Mendonça Filho. Embora o filme tenha sido boicotado para representar o Brasil no Oscar, o diretor produziu em sequência dois filmes muito significativos para o novo cinema pernambucano e o brasileiro.

O cineasta Gustavo Dahl disse durante o início do Cinema Novo, que a classe média iria finalmente ser representada nas telas, e o resultado seriam filmes “difíceis de engolir”. Os últimos trabalhos de Mendonça Filho deixariam o diretor orgulhoso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...